MUITO SE DISCUTE NO BRASIL SOBRE A AUSÊNCIA DO ZELO ESTATAL. Para Foucault, quando o Estado se abstém de implantar políticas públicas que garantam a inserção e o acesso conjunto a um estado de bem-estar social, está selecionando quem vive e quem morre. Ademais, para Achille Mbembe, o poder do Estado sob a vida e a morte não está limitado à passividade de abstrair ou deixar de praticar uma ação, mas se trata de políticas públicas ativas e intencionadas a promover a morte de comunidades indesejadas. Neste sentido, o texto apresenta uma análise de fatos sociais ainda mais visíveis durante a pandemia de covid-19 no Brasil, e faz correlação entre a forma que o Estado brasileiro conduz a crise, as mazelas sociais que assolam os brasileiros mais vulneráveis e o conceito abordado pelo autor.
Mbembe afirma que: “Qualquer relato histórico do surgimento do terror moderno precisa tratar da escravidão, que pode ser considerada uma das primeiras instâncias da experimentação biopolítica.” (MBEMBE, 2016, p. 130). Neste sentido, o Brasil apresenta um histórico de três séculos de escravidão, situação na qual pessoas negras foram destituídas de humanidade e tratadas como mercadoria, e mesmo após a abolição da escravatura não foram implantadas políticas públicas de inclusão, e a necropolítica continuou atuando como regra, segregando, impedindo pessoas negras de chegarem aos locais de poder, e desta forma, produzindo desigualdades de raça que perpetuam efeitos até a contemporaneidade.
Durante a pandemia de covid-19 o governador do Estado do Pará, Hélder Barbalho, publicou decreto estadual n° 729/2020 no Diário Oficial adotando o lockdown como medida de combate ao vírus. O termo é utilizado para designar a paralisação parcial ou total da circulação de pessoas. Porém, o que gerou repercussão nacional foi a lista publicada inicialmente, que previa, na posição 58, a atividade doméstica como essencial. Portanto, empregadas domésticas não teriam direito ao isolamento social. Isto posto, cabe destacar a primeira morte decorrente de covid-19 no Brasil, uma mulher, empregada doméstica que foi contaminada por seus patrões.
Ao usar de decreto legal para taxar como atividade essencial o trabalho de empregadas domésticas, o governador do Pará não apenas reproduziu a herança escravista, como também esta conduta se alinha ao conceito de necropolítica. Após a repercussão negativa, o decreto foi alterado. Percebe-se, como já apresentado neste texto, que para Achille Mbembe, o Estado não apenas exerce o poder sob a morte na conduta de se ausentar ou pela falta de zelo, mas também ao produzir políticas públicas que funcionam como extermínio para determinados grupos.
Desde 2018, com a Reforma Trabalhista, as relações de trabalho foram repensadas. Houve um crescimento desenfreado do trabalho informal, e ganhou popularidade a falácia de que seria melhor aniquilar os nossos direitos trabalhistas para garantir um maior número de empregos. Ademais, a falta de condições dignas de trabalho e a exploração até exaustão, também são formas de nos submeter a sacrifícios que muitas vezes adoecem e causam a morte, visando apenas satisfazer as necessidades econômicas do mercado.
Enquanto alguns discutem home office, empregadas domésticas permanecem deixando os filhos sozinhos em casa para pegar conduções e enfrentam aglomerações para limpar a casa dos seus patrões e voltar para casa carregando o risco de estar contaminada e contaminar a própria família. No momento em que alguns reforçam a corrente da campanha “fique em casa” existem entregadores realizando atividades sem qualquer amparo da empresa, graças à lógica do “menos direitos, mais empregos”. No que concerne ao alcance do vírus e a forma de contágio, estaria o Estado brasileiro garantindo igualdade de proteção a todos os grupos sociais?
É evidente que o vírus não possui capacidade de fazer distinções sociais para contagiar, mas é notório também que a maneira pela qual ocorre a contaminação e as consequências que surgem a partir dela afetam de formas diferentes os corpos, estando inteiramente ligada aos marcadores de desigualdade social, atenuados pelo Estado, que ao produzir um cenário de insegurança e exposição contribui para lançar grupos vulneráveis ao extermínio, aspirando o desenvolvimento da economia e desvalorizando vidas.
É imprescindível, portanto, rompermos com a lógica escravista, que segrega e nos mantém em trabalhos subalternizados. Para isso, é necessário assumir as responsabilidades de erros do passado; é fundamental o entendimento que, após mais de 300 anos de escravidão, o Estado brasileiro seguiu produzindo a necropolítica. Afinal, não é possível enfrentar a necropolítica no Brasil, sem nomeá-la e reconhecer as desigualdades e os marcadores sociais de raça, classe e gênero.